Por José Del Chiaro, Luiz Felipe Ramos, Mariana de Azevedo César e Maria Beatriz Fidalgo

A liberdade de um agente autônomo de investimento (AAI) exercer a sua atividade em outra corretora ou plataforma tem dupla função. De um lado, favorece a sua mobilidade, poder de barganha e tende a resultar em maiores remunerações dos trabalhadores. De outro, pode viabilizar a entrada no mercado e a concorrência efetiva por parte de outras empresas distribuidoras de produtos de investimento, beneficiando o consumidor.

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Não se trata de liberdade ilimitada: há restrições razoáveis que podem ser impostas visando, por exemplo, a proteção de informações sigilosas e de investimentos. Contudo, algumas empresas têm exorbitado os limites e criado amarras abusivas à mobilidade de AAIs. Um exemplo disso é a utilização de supostas cláusulas de “não-aliciamento” que, na prática, impedem o AAI de exercer a sua atividade em outro local de trabalho.

Abusos desse tipo maculam o reconhecimento jurídico e social atribuído a cláusulas de não concorrência. No limite, a constatação de um uso aparentemente excessivo e indiscriminado de tais cláusulas pode levar a decisões como a da Federal Trade Commission (FTC) dos Estados Unidos, que recentemente optou por banir de forma ampla o emprego das chamadas non-compete. De modo a evitar que cheguemos a esse ponto, é importante que as autoridades brasileiras estejam atentas a situações de abuso que vêm se proliferando nos últimos tempos.

Importância da mobilidade de AAIs

O mercado de distribuição de produtos de investimentos deve ser segmentado de acordo com o perfil das entidades que ofertam tais produtos, podendo funcionar por plataformas abertas ou fechadas. Estas são instituições que distribuem, majoritariamente, produtos financeiros próprios por meio de colaboradores internos atuando sob seu direcionamento.

Já as plataformas abertas funcionam como uma espécie de marketplace, sendo acessível tanto a ofertantes quanto a demandantes de produtos de investimento, distribuindo um portfólio próprio ou de terceiros por meio, principalmente, de AAIs que possuem autonomia e estratégia própria para a captação de clientes.

A maior flexibilidade e autonomia dos AAIs constitui importante elemento para tornar a relação com os clientes mais célere e eficiente. Também possibilita capilaridade na distribuição dos produtos e captação de novos clientes. Assim, para concorrer de maneira efetiva, uma plataforma aberta de investimento deve ser capaz de acessar uma rede de AAIs efetiva, o que só ocorre se tais agentes puderem exercer sua mobilidade no mercado.

Não basta que haja profissionais habilitados para atuar como agentes autônomos: é fundamental que os AAIs aderentes à plataforma tenham habitualidade, constância e capacidade de captação de clientes, que é o que lhes confere potencial, de fato, competitivo. Assim, para que o mercado funcione, os AAIs devem ter autonomia suficiente para exercer sua mobilidade e prestar serviços às plataformas distribuidoras.

Isso não significa que toda restrição à mobilidade dos AAIs seja injustificada. No entanto, situações de abuso têm sido reportadas e amplamente noticiadas [1]. Tais abusos aprisionam o agente para além do razoável, impactando duplamente a concorrência: causam prejuízo à concorrência no mercado de trabalho, impedindo o livre exercício de atuação do AAI, e à distribuição de produtos de investimentos, uma vez que plataformas de distribuição não conseguem acessar AAIs que viabilizam potencial de concorrer de maneira efetiva.

Razoabilidade da non-compete no Brasil

No Brasil, cláusulas de não concorrência já foram analisadas sob o viés trabalhista em diversas oportunidades, bem como já houve sinalização sobre sua adoção pelo Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Tais cláusulas adotadas entre empregadores e empregados já foram admitidas em algumas oportunidades, desde que prevejam compensação financeira adequada e cumpridos alguns requisitos. Segundo desenvolvimento jurisprudencial, exige-se que tais contratos sejam adotados por escrito, contenham limitação temporal — sendo razoável o prazo máximo de dois anos — em ramo de atividade e território específicos, bem como devem conter contraprestações, em geral, sob a forma de indenização [2].

O Cade já sinalizou que cláusulas de não concorrência que restrinjam a capacidade de trabalhadores de trabalhar para um empregador diferente deverão ser analisadas levando-se em conta a razoabilidade de seu escopo, alcance geográfico e duração. Segundo a autoridade, é necessário contrapor as razões que justificam a adoção da cláusula com a restrição concorrencial por ela imposta, bem como a sua adequação ao caso concreto [3].

Abstração feita aos modelos de contratação, os abusos decorrem, principalmente, da inexistência de compensação financeira adequada e descumprimento dos limites e parâmetros estabelecidos pela jurisprudência. Cláusulas de não concorrência têm superado os limites temporais e de escopo da atividade e de território considerados razoáveis pela legislação trabalhista e concorrencial, sem previsão de compensação financeira ou com compensação inadequada e desproporcional.

Estes abusos restringem a mobilidade de AAIs que efetivamente atribuem potencial competitivo, e deixam de ser acessados por plataformas rivais, inibindo a concorrência no mercado. As restrições à mobilidade de tais agentes também tendem a acarretar remunerações em níveis mais baixos e piores condições de trabalho.

Por outro lado, cláusulas de não concorrência que respeitam os parâmetros legais e jurisprudenciais podem contar com justificativas para sua adoção. Tais dispositivos já foram justificados como forma de evitar a prática de concorrência desleal, tipificada na Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Intelectual), uma vez que dificultaria o recebimento, por funcionários, de dinheiro, utilidade ou recompensa para proporcionar vantagem indevida a concorrente do empregador.

Também evitariam a divulgação ou exploração de conhecimento, informações ou segredos comerciais aos quais o funcionário teve acesso mediante relação contratual ou empregatícia, sobretudo quando envolvem dados pessoais e/ou fiscais, que receberam proteção na Lei 13.709/2018 (LGPD) e outras legislações (como a Lei Complementar 105/ 2001).

Cláusula de ‘não-aliciamento’ e outros abusos

São exemplos de cláusulas de não-concorrência abusivas aquelas: (1) aplicadas por períodos exorbitantes, (2) em que não há limitação territorial; (3) indevidamente abrangentes com relação à força de trabalho alcançada, independentemente do seu nível hierárquico; (4) nas quais não se estipula compensação financeira; (5) em que há compensação financeira desproporcional; (6) são impostas multas excessivas e não razoáveis; ou (7) levem ao fechamento de canal de distribuição relevante para os concorrentes.

Um abuso que merece destaque, cuja adoção em contratos tem passado despercebida, é a dissimulação da cláusula de não concorrência por meio de um alegado “não aliciamento”. Tipicamente, uma cláusula de não solicitação ou não aliciamento restringe a persuasão, pelo ex-funcionário, da força de trabalho empregada pelo seu empregador anterior. No entanto, algumas empresas têm adotado uma cláusula de “não aliciamento” de clientela, sem a devida compensação financeira e por prazos não razoáveis, o que, na prática, acaba impedindo o AAI de exercer a sua atividade em outro local. Em outras palavras, trata-se de um “non-compete” disfarçado, introduzido para se tentar evitar a aplicação dos parâmetros legais que regem esse tipo de cláusula.

Na medida em que se reveste de aparente legalidade (a de uma cláusula de não aliciamento) para resultar em finalidades ilícitas (um non-compete em desacordo com os parâmetros legais), a aplicação de tais cláusulas pode ser considerada um abuso de direito (artigo 187 do Código Civil). Note-se que a banalização na utilização das cláusulas de não concorrência, com aplicação em circunstâncias abusivas, poderá comprometer o reconhecimento jurídico e social de restrições justificadas, tais como os acordos de “Garden-Leave” e non-compete adotados com um número restrito de trabalhadores razoavelmente compensados.

Banimento pelo FTC

A Federal Trade Commission (FTC), uma das responsáveis pela proteção à livre concorrência nos Estados Unidos, proibiu no último mês de abril [4] a adoção de cláusulas de não concorrência, ou de qualquer cláusula que produza o mesmo efeito. O objetivo é promover a inovação e a concorrência, impedindo que as empresas restrinjam a mobilidade profissional dos trabalhadores.

A proibição decorre da constatação de um uso considerado indiscriminado e irrazoável dessas cláusulas, abrangendo empregados de diversos níveis hierárquicos. Cerca de 20% dos trabalhadores [5] nos Estados Unidos estariam sujeitos a algum tipo de obrigação de não concorrência, o que teria levado a uma diminuição da mobilidade, do crescimento de salários e da disponibilidade ao mercado.

As obrigações de não concorrência abrangidas pela regra são aquelas que proíbem ou penalizam a concorrência, ao impedir que um trabalhador busque, aceite trabalho ou empreenda após o término daquela relação profissional. Segundo a determinação da FTC, ainda a ser confirmada nos tribunais, as atuais cláusulas de não concorrência firmadas entre empresas e seus executivos de nível sênior podem permanecer vigentes.

É importante notar que a proibição da FTC abrange cláusulas de não solicitação que funcionem, na prática, como cláusulas de não concorrência. Esse é o caso das cláusulas ditas de “não aliciamento”, que impedem, de fato, a capacidade do AAI de trabalhar em outro lugar.

Olhar atento

Um desenvolvimento saudável da distribuição de produtos de investimentos no Brasil depende da capacidade de se coibir a adoção abusiva de cláusulas de não concorrência com AAIs, preservando apenas as restrições legítimas. Nesse sentido, esse artigo defendeu que cláusulas de “não aliciamento” que funcionem, na prática, como restrições à concorrência, devem estar sujeitas aos parâmetros que regulam a adoção de non-competes no Brasil.

Para que evitemos uma situação-limite como o banimento geral de tais cláusulas no Brasil, é oportuno que estejam amplamente disponíveis canais jurídicos para avaliação de tais cláusulas. Entre eles, investigações pelo Cade, pelo Ministério Público do Trabalho, bem como como o exercício dos direitos trabalhistas e cíveis por parte de trabalhadores e empresas prejudicadas no Poder Judiciário.

 

[1] Ver, por exemplo, https://einvestidor.estadao.com.br/comportamento/o-chao-de-fabrica-da-faria-lima/. Acessado em 05 de junho de 2024. Encontra-se também em andamento no Cade, em fase recursal, investigação sobre as práticas da XP Investimentos nesse mercado (Inquérito Administrativo nº 08700.006476/2022-92)

[2] Ver Peres, Antonio Galvão; Robortella, Luiz Carlos Amorim. Cláusula de não-concorrência e confidencialidade no contrato de trabalho. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-trabalhista-nos-negocios/355683/clausula-de-nao-concorrencia-confidencialidade-no-contrato-de-trabalho.

[3] Conforme Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61.

[4] Conforme  https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2024/04/ftc-announces-rule-banning-noncompetes. Acessado em 5 de junho de 2024. Ver nossa análise anterior em https://www.conjur.com.br/2024-mai-19/clausula-de-nao-concorrencia-o-banimento-pela-ftc-e-seus-impactos-no-brasil/

[5] Balasubramanian, Natarajan and Starr, Evan and Yamaguchi, Shotaro, Employment Restrictions on Resource Transferability and Value Appropriation from Employees (16 de maio de 2024). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3814403. Acessado em 5 de junho de 2024.

Publicado no ConJur.