Por Luiz Felipe Ramos e Maria Beatriz Fidalgo

Em 23 de abril de 2024, a FTC (Federal Trade Commission) dos Estados Unidos editou uma regra banindo todos os acordos de não concorrência (non-compete) no país ou qualquer outra cláusula que tenha como consequência efeitos anticoncorrenciais semelhantes. A iniciativa busca incentivar a inovação e a competição, impedindo que as empresas limitem a mobilidade profissional de seus empregados [1].

As restrições de não concorrência mencionadas na decisão incluem aquelas que proíbem um trabalhador de procurar ou aceitar emprego, ou de iniciar um empreendimento, após o fim de seu vínculo profissional, impedindo ou dificultando a concorrência.

Em razão dessa proibição abrangente foram ajuizadas ações que alegam, resumidamente, que: (1) a FTC não tem competência para legislar sobre o assunto; (2) a FTC não tem competência para editar normas substantivas; (3) a regra é excessiva.

Em uma das decisões, a regra da FTC foi anulada por, entre outras razões, (1) desconsiderar os efeitos positivos decorrentes de non-compete, (2) não estar baseada em estudos suficientes sobre os efeitos econômicos dessas cláusulas e (3) desconsiderar a existência de alternativas menos restritivas para obtenção dos resultados de inovação e competição pretendidos pela FTC.

Nos Estados Unidos, esse é um debate ainda em andamento. A recente anulação deve ser objeto de recurso e futuras discussões. No Brasil, a experiência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), confirmada pela recente decisão no caso IBM/Software AG, sugere cautela em face de tentativas de proibição abrangente dessas cláusulas.

Decisão da Corte Federal do Texas pela anulação da regra

Em 20 de agosto de 2024, a juíza Ada Brown, do Tribunal Federal do Texas, proferiu decisão que anulou a regra do FTC, em um julgamento antecipado da lide, no caso Ryan LLC v. Federal Trade Commission. A magistrada concluiu que a criação da regra excedeu a competência da autoridade antitruste americana.

A demanda contou com intervenção da Chamber of Commerce of the United States of America, Business Roundtable, Texas Association of Business e Longview Chamber of Commerce, argumentando que a regra excede a competência da FTC por três motivos:

 

(1) a FTC Act não autoriza o órgão a estabelecer regras substantivas/materiais de condutas anticompetitivas

(2) a ampla proibição de todos os acordos de não concorrência de trabalhadores considerando-os “métodos anticompetitivos” não corresponde ao significado dessa frase na Section 5 da FTC Act, e

(3) a comissão não tem competência para invalidar retroativamente milhões de contratos existentes. Além disso, argumentaram que a regra é arbitrária por três motivos:

 

(a) a FTC não apresentou evidência para fundamentar sua ampla proibição de acordos de não concorrência,

(b) a comissão descartou injustificadamente alternativas — como, por exemplo, análise caso a caso ou em acordos de demissão [2] — que teriam permitido que atingisse seus objetivos a um custo menor, e

(c) a comissão se baseou em uma análise falha de custo-benefício para sustentar sua regra [3].

A decisão concluiu que a FTC possui competência para estabelecer regras voltadas a impedir condutas anticompetitivas. No entanto, sua competência não se estende à criação de regras materiais/substantivas. A juíza entendeu que a FTC excedeu sua competência, de acordo com a Section 6(g) da FTC Act.

O tribunal considerou a regra proposta pela FTC “arbitrária e imprevisível”, destacando que sua amplitude é excessiva e sem precedentes. A decisão ressaltou que a regra impõe uma solução uniforme para todos os casos, por tempo indeterminado, sem estabelecer uma conexão lógica e fundamentada entre os fatos apurados e a medida adotada.

Além disso, o tribunal observou que a FTC se baseou em um número limitado de estudos que analisaram os efeitos econômicos de políticas estaduais sobre cláusulas de não concorrência. Tais estudos comparavam abordagens específicas adotadas por diferentes estados em situações fáticas particulares — algo inadequado para justificar uma proibição tão abrangente. Por fim, a corte concluiu que a FTC desconsiderou tanto os efeitos positivos dos acordos de não concorrência, quanto o conjunto de evidências que os apoia.

Outro fundamento trazido pela decisão é que a FTC não abordou suficientemente as alternativas à edição da regra. Ressaltou que o órgão não considerou exceções ou outras medidas menos abrangentes e que levassem a um mesmo resultado, de modo que não há razoabilidade na imposição de uma regra tão abrangente.

Com esta decisão, foi anulada a regra da FTC que baniu os acordos de não concorrência nos Estados Unidos, que entraria em vigor em 4 de setembro de 2024. A porta-voz da comissão, Victoria Graham, disse em um comunicado sobre a decisão que a FTC irá continuar lutando para impedir os acordos de não concorrência que restringem a liberdade econômica dos americanos, dificultam o crescimento econômico, limitam a inovação e reduzem os salários [4].

Divergência

Em sentido oposto, em 23 de julho de 2024, o Tribunal Federal da Pensilvânia havia decidido por manter em vigor a regra da FTC. No caso ATS Tree Services v. FTC [5], o autor da ação alega que a comissão não tem competência para editar regras substantivas para impedir condutas anticompetitivas; que, ainda que tivesse tal competência, a proibição de todos os acordos de não concorrência excede sua autoridade; que banir todos este acordos existentes para executivos não sêniores é arbitrário e imprevisível; e que a FTC Act delega inconstitucionalmente poder legislativo à comissão.

Quanto ao mérito, o autor da ação defende que a FTC aplique a chamada “regra da razão” para analisar os acordos de não-concorrência (non-compete), avaliando os efeitos positivos e negativos das cláusulas. Sob esta regra, a conduta é avaliada a partir da ponderação entre os prejuízos à economia e as vantagens geradas no mercado.

O tribunal entendeu que a FTC tem competência para criação de regras, concluindo que no texto do FTC Act não há limitação expressa quanto ao seu poder de regulamentação. Quanto à alegação de que a regra seria excessiva, destacou que o Congresso escolheu o termo “evitar” no sentido de agir preventivamente para impedir ameaças de condutas anticompetitivas, não apenas de forma repressiva.

No mérito, a decisão baseou-se no argumento trazido pela FTC de que tais acordos são exploradores e coercitivos quando não envolvem executivos seniores, uma vez que os empregadores impõem a obrigação unilateralmente sem compensação adequada, além de restringir a mobilidade dos trabalhadores.

Por fim, no caso Properties Of The Villages, Inc. v. FTC [6], o Tribunal da Flórida decidiu, em sede liminar, que a regra do FTC de banir cláusulas de não concorrência deve ter sua aplicação afastada em relação a uma comunidade de aposentados da Flórida até que as discussões sobre o assunto sejam finalizadas.

Assim como nos outros casos, o autor defendeu que  o órgão não tem competência para criar regras substantivas. Em relação a este argumento, o entendimento do tribunal foi semelhante ao do Tribunal do Texas, no sentido de que o poder de regulamentação de um órgão administrativo deve ser sempre fundamentado em uma concessão válida do Congresso.

Ainda, para conceder a liminar, o tribunal considerou que o autor iria incorrer em custos para revisar seus acordos de não concorrência existentes, tendo de verificar a conformidade com a regra e traçar estratégias sobre como melhor alterar seus acordos e modelos de negócios existentes. Isso ocorreria enquanto a regra do FTC ainda está sendo discutida, o que não seria razoável e causaria um dano irreparável.

Impactos potenciais nos EUA

A decisão do Tribunal Federal do Texas gera inúmeros impactos para o mercado norte-americano.

Em primeiro lugar, caso de fato a regra do FTC seja anulada, os empregadores poderão deixar de notificar seus funcionários de que os acordos de não concorrência firmados anteriormente não serão mais válidos. Além disso, poderão continuar a utilizar essas cláusulas para proteger seus segredos de negócios.

Portanto, enquanto não houver uma decisão definitiva, na ausência de recurso no caso Ryan LLC v. Federal Trade Commission, a regra do FTC não poderá ser aplicada.

Implicações para o Brasil

No Brasil, a questão da aplicação de cláusulas de não concorrência também tem sido discutida pela autoridade antitruste.

Recentemente, o Ato de Concentração entre IBM e Software AG [7], aprovado sem restrições pela Superintendência-Geral do Cade, foi objeto de despacho de avocação pelo conselheiro Gustavo Augusto de Lima em razão da alegada excessiva abrangência das cláusulas de não concorrência e não aliciamento adotadas no contexto da operação.

Com o despacho, as partes envolvidas alteraram os termos de ambas as cláusulas. Inicialmente, a obrigação de não concorrência determinava que a Software AG, empresa vendedora, não tivesse relação comercial com qualquer outra empresa, que não a IBM, por três anos.

Além disso, não havia distinção, quanto ao escopo, sendo aplicada para desenvolvimento de produto, distribuição, serviços de suporte e serviços de consultoria relacionados a diversos mercados. Com a alteração, o escopo foi reduzido, e a empresa vendedora passou a ter restrição de atuar apenas em relação a produtos com as mesmas funcionalidades de determinados produtos da empresa compradora.

Em relação à obrigação de não solicitação, a primeira versão era aplicável a todos os empregados, sem ligação com o escopo da operação, e por um período de dois anos, independentemente do motivo da saída do funcionário. A nova redação limitou a cláusula de não solicitação apenas aos engenheiros de software e por um período de seis meses, contados da data de transferência do empregado para a nova empresa.

Com a alteração das cláusulas, houve perda de objeto da avocação e a operação pode ser consumada. Embora o Voto tenha sido proferido no âmbito de controle de estruturas, e não trate especificamente de non-compete estabelecida entre empresas e seus funcionários, há considerações sobre cláusulas de não concorrência em geral.

A decisão confirma a orientação do Cade em privilegiar uma análise caso a caso, baseada na regra da razão, o que impõe limites à importação da decisão da FTC. O conselheiro Gustavo Augusto de Lima considerou que “o FTC norte-americano adotou uma posição mais rigorosa e passou a entender que as cláusulas de no-poach devem ser banidas e tratadas como ilícitos per se”.

Afirmou, ainda, ver “com cautela a abordagem proposta pelo FTC, de abolição completa de acordos de ‘non-compete’”. Segundo o conselheiro, cláusulas de ‘non-compete’ e de ‘no-poach’ podem ser admitidas se não implicarem uma restrição pura da concorrência e se tiverem um propósito competitivo.

O debate sobre a avaliação jurídica e impacto concorrencial das cláusulas de non-compete está em plena marcha. Após seu banimento pela FTC, recentes decisões judiciais nos Estados Unidos preservam a validade desse tipo de cláusula. No Brasil, a avaliação tende a ser feita caso a caso, considerando as possíveis eficiências decorrentes de cláusulas de non-compete. De toda forma, o Cade já se mostrou atento à evolução do debate internacional, o que recomenda a todos os interessados no tema acompanhar atentamente os próximos passos da discussão norte-americana.

 

[1] Para uma análise sobre a decisão da FTC, ver https://www.conjur.com.br/2024-mai-19/clausula-de-nao-concorrencia-o-banimento-pela-ftc-e-seus-impactos-no-brasil/ . Discutindo a sua repercussão especificamente no mercado de distribuição de produtos de investimento, https://www.conjur.com.br/2024-jun-09/os-impactos-do-non-compete-abusivo-para-a-mobilidade-de-aais/.
[2] Vide: https://www.uschamber.com/assets/documents/Motion-for-Summary-Judgment-Ryan-v.-FTC-N.D.-Tex.pdf
[3] Ryan LLC v. Federal Trade Commission Civil Action No. 3:24-CV-00986-E Document 211
[4] Vide: https://content.mlex.com/#/content/1586591/us-ftc-considering-appeal-of-court-decision-setting-aside-arbitrary-noncompete-rule?referrer=search_linkclick
[5] ATS Tree Services v. FTC Civil Action No. 3:24-CV-00986-E Document 80
[6] Properties Of The Villages, Inc. v. FTC Case No. 5:24-cv-316-TJC-PRL Document 59
[7] Ato de Concentração nº 08700.000987/2024-62

 

Publicado no ConJur.